quarta-feira, 19 de julho de 2017

"Meu jantar com André" (1981), de Louis Malle



Cineasta pouco assistido pelas novas gerações e, entretanto, um dos grandes nomes do cinema francês contemporâneo, Louis Malle nos legou uma série de filmes incríveis. Sua filmografia não possui um padrão estilístico muito definido, como encontramos em Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman, François Truffaut e outros. Cada filme constitui um universo próprio, a tal ponto que “Zazie no Metrô” (“Zazie Dans le Métro”, 1960) e “Trinta Anos Esta Noite” (“Le Feu Follet”, 1963) não parecem ter sido concebidos por um mesmo artista, tamanha é a discrepância de propostas. Isso apenas na fase francesa. Na década de 1970, seguindo a tendência de muitos outros realizadores em diversos tempos, muda-se para os EUA, lançando “Lua Negra” (“Black Moon”, 1975), um de seus filmes mais complexos, pela profusão de simbolismos e estética surrealista. E prossegue apresentando obras interessantíssimas e marcadamente autorais, diferentemente de muitos europeus ou asiáticos que se radicam na América. Sua obra possui regularidade, o que poucos alcançam. E uma regularidade em alto nível.
“Meu jantar com André” (“My Dinner With Andre”, 1981) é o quarto filme de Malle em solo estadunidense. Estrela Wallace Shawn e Andre Gregory, interpretando... a si mesmos! Eles assinam também o roteiro. Antes de entrar no mérito do que o filme aborda, vale fazer uma breve digressão sobre esses dois artistas e seu trabalho. 
Gregory era um dramaturgo famoso, que escreveu seu maior volume de peças nas décadas de 60 e 70. Tornou-se um nome respeitado a partir de “The Manhattan Project” (1968), e chegou a dirigir a primeira peça escrita por Shawn, “Our Late Night”, em 1975. Logo após, inesperadamente, decidiu abandonar o mundo dos palcos, partindo em exílio voluntário para a Polônia a fim de encontrar o grande dramaturgo Jerzy Grotowski, onde teve experiências teatrais experimentais e sinestésicas curiosíssimas, seguindo depois para a Escócia, onde participou de uma comunidade espiritual. É em seu retorno que aceita integrar o elenco parelho do filme de Malle, começo de uma carreira como ator de cinema. 
Shawn era já um dramaturgo e ator cinematográfico (fizera uma participação em outro filme de Malle, “Atlantic City”, e em “Manhattan”, de Woody Allen, dentre outros pequenos papéis). Mas era como dramaturgo que já construía uma carreira mais consistente. Suas peças alinhavam-se ao chamado Teatro do Absurdo, movimento surgido no pós-guerra por influência da Filosofia do Absurdo (ou Absurdismo) de Albert Camus (v. “O Mito de Sísifo”), uma forma de pensar tipicamente existencialista. O pontapé inicial da transposição desse viés para o Teatro fora dado por Samuel Beckett em sua peça de 1952, “Esperando Godot”, que veio a influenciar Shawn diretamente.
O cunho das peças absurdistas é eminentemente tragicômico. Aborda-se o absurdo da inexistência de sentido no mundo e na vida humana, a angústia da liberdade, a suspeita de estar sendo governado por forças invisíveis erigidas a partir das estruturas de poder etc, e um tom cômico é inserido em meio a esse turbilhão nauseante da mente, como uma resistência final à contemplação do Nada, à epifania do Vazio.
Assim sendo, “Meu jantar com André” é quase que um documentário; só não chega a sê-lo por inteiro pois os diálogos foram criados e ensaiados exaustivamente antes. Os personagens, nada distintos de quem os atores são na vida real, combinam de se encontrar em um restaurante de sua cidade, Nova Iorque, após alguns anos sem contato. Suas esposas, quando mencionadas, também são as reais. “Wally” está em uma fase difícil, não conseguindo quem produza suas peças e, portanto, com a cabeça anuviada pelas contas a pagar; Andre, por sua vez, é um homem transformado pelas experiências e tem muitas reflexões e lições a transmitir. É pelo ponto de vista de Wally que somos convidados a encarar toda a situação. Com efeito, ele é o narrador e o único a aparecer sozinho nas duas isoladas e breves sequências fora do jantar. Como uma conversa que parece saída do romance “A Naúsea”, de Jean-Paul Sartre, operar-se-á um contraste entre um ato dos mais ordinários nos grandes centros urbanos contemporâneos – o de jantar em um restaurante – e a feição que o diálogo dos personagens assume, distante do início ao fim ao comum, ao que qualquer outra pessoa embotada pelo transe anestésico da irreflexão conversaria. As ideias postas em pauta impressionam por sua atualidade, motivo principal que me levou a escrever esse texto. Mas esteja atento. Toda concentração é pouca. As falas são dinâmicas, aceleradas, e encadeiam insights poderosos, demandando uma atenção extraordinária – como faria Bernt Amadeus Capra em “Ponto de Mutação” (“Mindwalk”, 1990). 


A certa altura, Andre comenta sobre uma proposta teatral que presenciou na Polônia, chamada “colméia de abelha”, onde 100 pessoas ficam confinadas em uma sala e tem de interagir umas com as outras como a interpretar papéis, exceto que toda espontaneidade de que se utilizem é ao mesmo tempo um ato do personagem e um ato da própria pessoa. Ator e personagem se confundem num mesmo ente. A composição do personagem, quando o ator tenta pensar como ele para melhor desenvolvê-lo e agregar-lhe complexidade, torna-se o que agrega a si mesmo enquanto pessoa. Este relato me parece bastante significativo na narrativa, pois metaforiza a própria relação entre os dois, num belo traquejo metalinguístico. 
O filme é montado de forma bem simples, com economia de ângulos, que frequentemente se repetem. O diretor de fotografia Jeri Sopanen opera um esquema padrão de plano/contra-plano conforme a fala seja de um personagem ou do outro, geralmente mantendo no quadro parte do corpo daquele que observa, denotando seu interesse. Ocasionalmente os planos ficam mais fechados, capturando algum deles em close quando se torna mais importante destacar a maneira como o mesmo é afetado emocionalmente pelo seu relato ou reflexão. E planos de conjunto são adotados quando o efeito é retornar a um ponto zero, geralmente quando o diálogo será interrompido por um dos garçons ou quando um assunto se encerra para dar início a outro. Não vemos o outro lado do salão e os demais clientes a não ser em momentaneamente, através de um espelho. No geral, Malle parece sugerir uma teatralização do encontro e ao mesmo tempo o próprio desajuste e isolamento do diálogo em questão perante o ambiente em que se desenvolve. 
Em um filme que é sobre Teatro e se perfaz teatralmente – mas sem deixar de ser Cinema –, tem um pé na literatura e filosofia existencialistas e critica muitos dos costumes pós-modernos, Malle faz algo esteticamente bem diferente de seus trabalhos anteriores, alcançando uma profundidade interessante com um orçamento mínimo ($475.000). E até, em certo sentido, um movimento – a limitação do ambiente não é empecilho para que o diretor nos faça viajar para muito distante pelas falas destes dois singulares personagens. 

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